O privilégio especialíssimo concedido a Nossa Senhora, concebida sem pecado desde o primeiro instante do seu ser e elevada sobre todas as criaturas, sempre teve ardorosos defensores e notáveis devotos ao longo da História da Igreja. Mas foi na península ibérica, remontando ao tempo em que Portugal e Espanha mal se constituíam como nações, que o culto da Imaculada Conceição floresceu e começou a marcar profundamente a alma de seus monarcas, de seus soldados e navegadores, como também de seus poetas.
Em Portugal a mais antiga referência a essa devoção data de 1320, quando o Bispo de Coimbra, D. Raimundo Ervrard, publicou uma constituição estabelecendo que a festa da Conceição deveria ser celebrada anualmente, no dia 8 de dezembro. Foram os Frades Franciscanos que mais se empenharam nos estudos e pregações sobre o referido tema, aliás, sob a benéfica influência da Universidade de Paris.
Em Belém, junto à praia do Restelo, levantara o Infante Dom Henrique uma capela consagrada à Virgem. E era a Senhora do Restelo que concedia a última bênção aos marinheiros quando eles iniciavam sua aventurosa epopeia nos mares. Por seu lado, os navegadores não se esqueciam da Augusta Senhora, e em meio aos riscos e incertezas do oceano, costumavam entoar, ao cair da tarde, o hino “Salve Regina” cujas notas, oriundas dos mosteiros medievais, atingiam então os “mares nunca dantes navegados”.
Em 1549, chegou ao Brasil o primeiro Governador Geral, Tomé de Sousa, cuja esquadra trazia em sua nau capitânea a Imagem de Nossa Senhora da Conceição. Em Salvador, então capital da colônia, foi edificada próxima ao porto a primeira capela. Nesse pequeno templo religioso, passou a ser venerada a Imagem, e por causa de sua localização era a primeira a ser visitada por todos os que chegavam de viagem. A igreja primitiva foi demolida no século XVIII, para dar lugar a outra, bem maior, cujas paredes foram constituídas por pedras artisticamente esculpidas em Portugal e de lá trazidas para Salvador.
A união de Portugal com a Espanha, em 1580, concorreu para maior glorificação da Virgem. Naquela época, já se realizavam as solenes procissões de 8 de dezembro, mas o Senado de Lisboa imaginou um modo mais excelente de assinalar a lembrança da sublime prerrogativa de Nossa Senhora. Encaminhou a Madrid uma sugestão, no sentido de serem colocadas placas nas portas das cidades, proclamando de forma duradoura o grande privilégio da Imaculada Conceição. O Rei Felipe III respondeu favoravelmente à solicitação do Senado luso, em carta de 8 de março de 1618, dizendo textualmente: “Aprovo muito a piedade com que vos movestes e assim podereis executar e muito vos encarrego que seja dilação“.
Os tempos eram bem diferentes dos nossos! Seguiram-se manifestações do Clero, reunindo nos sínodos diocesanos de Braga e Coimbra, jurando defender a Imaculada Conceição.
A 1.° de dezembro de 1640, emancipou-se Portugal, e a primeira cerimônia religiosa a que assistiu o novo soberano português, Dom João IV, foi a festa da Imaculada, celebrada na sua capela real, no dia 8 daquele mês. Frei João de São Bernardino, Franciscano, proferiu o sermão da Missa, relembrando a devoção “do grande Rei Dom João Primeiro, que ele mesmo trasladou as horas do latim para a língua portuguesa, que na corte acendeu muita devoção da mesma Senhora. O fortíssimo Dom Nun’Álvares Pereira foi o primeiro que levantou Igreja em Portugal da Imaculada Conceição“.
Compreende-se assim que a Senhora da Conceição fosse escolhida como Padroeira do Reino, com tributo anual pago a sua Igreja em Vila Viçosa. Esse tributo, no qual estava representado todo o povo português, era um sinal de vassalagem à Rainha do Céu e da terra.
A consagração oficial foi realizada com o maior esplendor a 25 de março de 1646, tendo participado também a Universidade de Coimbra, com seus mestres e estudantes. Estes, a partir de então, eram obrigados a prestar o juramento de defender a Imaculada Conceição, quando obtivessem qualquer grau acadêmico. Na época, passaram a circular as novas moedas mandadas cunhar por Dom João IV, que traziam gravada a efígie de Nossa Senhora da Conceição. Moedas de ouro e de prata, que hoje poderiam ser tidas por medalhas… Foi dessas moedas que se serviu o Rei para efetuar o pagamento do primeiro tributo feudal à Igreja de Vila Viçosa.
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Além dos Pirineus porém, as heresias minavam a Santa Igreja.
Um século antes, Lutero levantara o estandarte do livre exame, e os fermentos do protestantismo corroíam a Cristandade. Os portugueses não desconheciam tais perigos. Dom Pero Fernandes Sardinha, por exemplo, o primeiro Bispo do Brasil, estudou em Paris tendo por companheiros duas conhecidas figuras: Calvino e São Francisco Xavier. Quanto se distanciaram, depois esses homens! Um entrou para a História como apóstata e heresiarca, o outro como apóstolo, Santo e padroeiro das missões.
Mas Nossa Senhora da Conceição protegia a Península Ibérica.
Dom João IV estendeu mais tarde a todas as vilas, cidades e povoações do Reino a recomendação de assinalar em lápide o compromisso de defender sempre a Imaculada Conceição, só deixando de fazê-lo se a Santa Igreja passasse a ensinar oficialmente o contrário. Os dizeres a serem inscritos em latim eram especificados pela ordem real, e tinham a seguinte tradução:
“Inscrição destinada à eternidade. A Imaculada Conceição da Bem-Aventurada Virgem Maria. Dom João IV, Rei de Portugal, juntamente com as Cortes dos Estados do Reino, em ato público obrigou-se por voto solene a si e aos seus reinos tributários a um censo anual, e prometeu um juramento perpétuo que ele havia de defender a Mãe de Deus, concebida sem pecado original e tomada por padroeira e protetora do seu Reino. E para perpetuar essa piedade de Portugal, mandou esculpir esse preito e juramento em lâmina de bronze, para memória perene no ano de Nosso Senhor Jesus Cristo de 1646, 6.° do seu Império” (1).
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A cidade de Salvador cumpriu, como capital da América portuguesa a ordenação real, colocando na fachada da Casa dos Governadores, a inscrição que lembrava a obrigação assumida por El-Rei, e todos os seus vassalos. Ali foi mantida até 1898, ocasião em que foi retirada devido a uma reforma geral no prédio e também sob influência do laicismo.
Contudo, a placa voltou.
Voltou em cópia “fac-símile” uma vez que a original encontrava-se danificada.
A 25 de março de 1946, exatamente 300 anos depois do histórico juramento de Dom João IV, grande manifestação popular foi realizada em Salvador para celebrar o acontecimento. Uma procissão conduzindo a Imagem de Nossa Senhora da Conceição dirigiu-se da cidade baixa ao Palácio Rio Branco, em cuja fachada foi recolocada a placa de bronze, tendo na ocasião discursado o representante do Governador do Estado, Sr. Nascimento Junqueira, diante de uma multidão calculada em 80 mil pessoas.
A cerimônia não foi apenas o eco de um longínquo passado. Foi também o pulsar de uma nova esperança. Esse eco, entretanto, não se fazia ouvir sozinho. Juntava-se à voz de Pedro, vinda da Cidade Eterna.
Com efeito, em 1854, Pio IX proclamara solenemente o dogma da Imaculada Conceição, para alegria de todo o orbe católico.
Ressoavam também os cânticos dos peregrinos de todas as partes do mundo, que a partir de 1858 acorriam ao Santuário de Lourdes, na França, onde Nossa Senhora, aparecendo a Santa Bernadette Soubirous confirmou com milagres e a seguinte frase aquela devoção há séculos tão arraigada no povo português: “Eu sou a Imaculada Conceição“.(1)
Cf. “Efemérides da Freguesia de Nossa Senhora da Conceição da Praia“, de Monsenhor Manoel de Aquino Barbosa, Salvador, 1970, p. 212.
Fonte : Revista Catolicismo, Março de 1978
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